Vampirismo

Não acredito em vampiros. Nunca fui lá muito em sagas vampirescas ou afins, desde as que nascem nos livros, às que terminam transformadas em superproduções para o grande ecrã, às mais debilitadas em efeitos especiais divulgadas na televisão. Nunca fui lá muito com vampiros ou chupa-cabras, nunca acreditei que fosse possível existirem, nunca pensei sequer nessa possibilidade. Contudo, o certo é que fui surpreendida – deram comigo, com todos nós -, estão cá e vieram para ficar. São vampiros chupa-gente! Juro! São mesmo! Aparecidos do nada, acercaram-se para dar continuidade à espécie – proliferar camuflados entre nós – dê enquanto der, dê até onde chegar. Agora – eu que não acreditava em vampiros, chupa-cabras e afins -, depois de terem dado comigo, eu ter dado de cara com eles, já acredito – os safados existem mesmo e estão por todo lado, por vezes até onde menos esperamos – na praia, nas feiras, no bolhão. Muitas vezes abro a carteira só para certificar-me de que não levo algum infiltrado, a tentar à socapa levar-me o pouco que ainda me resta. Mato-o juro – esfrangalho-o todo se o encontrar -, seja lá ele de que tamanho for! É assim que acontece, não contamos com eles, vamos metidos na nossa vidinha controlada, recatada, séria, e – catrapus – tropeçamos num – catrapus – tropeçamos noutro – catrapus – não nos levantamos mais! Estamos quilhados! Estão por todo o lado e são tão reais e inevitáveis como o ar poluído, os ácaros, os micróbios, os vírus! Se duvidei alguma vez da existência desta corja sanguinária, não duvido mais – estão entre nós, à vista desarmada de todos, mesmo debaixo da curva do nosso nariz – uma verdadeira praga! Cuidado! Dissimulados parecem poucos, às vezes até não parecem nada – juntos são um verdadeiro flagelo, o extermínio completo de um povo, de uma sociedade, quiçá de uma civilização. Entre nós, coabitam camuflados e de garras recolhidas sob finas indumentárias, mandíbulas disfarçadas com sorrisos, rugidos encobertos por floreados de retórica, a sede latente mascarada de gestos nervosos dificilmente contidos, a fome insaciável denunciada no brilho indiferente do olhar. Se prestarmos bem atenção, conseguimos descobri-los mesmo ao nosso lado, no autocarro, no passeio, no trabalho, numa longa fila, de malinha na mão, muito bem comportados e aprumadinhos! Estão à espera do momento certo para se atirarem ao pescoço, começarem a sugar até não restar nada. São tão ambiciosos que às vezes até lutam entre si, a mesma espécie de besta vampiresca contra outra da mesma laia. Debatem-se por qualquer nesga a mais de qualquer coisa a menos. Por vezes descuidam-se e esgadanham-se todos, engasgam-se e foge-lhes a boca para a verdade, descuidam-se, coram, tropeçam, caem, borram-se todos – deixam emergir o que era para esconder – revelam-se – vemo-los e espantamo-nos. Pode lá ser! Não pode ser, pois não? Pode, pode! Acreditem que pode! Acordem! Algumas vezes são aqueles que menos esperamos – os mais católicos e prendados, de repente os mais audazes e vis –, os piores. Foram certamente contaminados, mordidos – não têm culpa de pertencerem ao grupo – nada fizeram para isso – dirão. Mentem! Sabem faze-lo como ninguém! Não podemos confiar! Muitas vezes, lutam entre si por liderança – por mais poder fazem tudo, até aniquilar um da própria família. Quando erram, bulham e atiram culpas em todas as direções – nunca há culpados. Quando há é o mesmo que não haver – são como já disse antes – ácaros, vírus impossíveis de identificar, isolar, incriminar, extinguir. Entre os vampiros raramente algum é punido pelo grupo, escorraçado do núcleo, desprovido de tudo. Poderá sim ser obrigado a recolher-se à toca por um tempo, esperar por uma muda de cenário, de adereços para voltar logo que possível, renovado e fresco, irreconhecível – nem ele próprio lembrado do que foi, nós do que ele é. Se algum dos vampiros do grupo questiona qualquer princípio inabalável da casta, porque tem uma gotinha que seja de sangue humano, uma réstia de dignidade, é logo deposto, escorraçado para nunca mais voltar – tal como acontece com os vampiros dos filmes. Não querem correr riscos, pôr em causa o bem-estar e a continuidade da espécie. E tal e qual como acontece nos filmes, só que muito pior – estes estão vivos e entre nós – ao contrário dos outros que se esfumam quando acabam as pipocas, a coca-cola, saímos para a claridade. Os vampiros chupa-gente estão sempre presentes, às vezes até vão ao cinema ver a saga de outros vampiros, procurar inspiração, redenção, esquecer as próprias maldades com as maldades inventadas dos outros. Assim sendo, aqueles que nos devem preocupar, os mais aterradores, os mais maléficos, miraculosos, engenhosos e sequiosos seres sanguinários, que nos invadem a vida, os sonhos, o aconchego dos edredões, dão-nos cabo do corpo e do descanso, sugam-nos a vontade de continuar, não são definitivamente os que habitam nos livros, que povoam as telas ou as séries televisivas, são sim os que superam sozinhos qualquer audiência, desde as das telenovelas, às do futebol e da Secret Story –, são os vampiros chupa-gente da vida real. Para estarem gordinhos como estão, nutridinhos e com os nichos proveitosamente recheados – coisa que levaria o seu tempo e capital, e tempo foi o que mais lhes faltou -, concluo que já cá estavam todos e há muito tempo a trabalhar conjuntamente para o mesmo – talvez desde sempre, na obscuridade da vida, como parasitas alienígenas que querem controlar o mundo, ser donos de tudo, até uns dos outros se for possível. Uma verdadeira corja não identificada contra a qual não há pesticida que nos valha. Concluo sobre tudo isto, sobre este súbito despertar vampiresco, sobre o perigo que esta espécie representa, que depois de tanto tempo descansados, sem serem controlados, perseguidos, detidos, interrogados, punidos, tanto tempo a beliscar do bolo de todos, apenas se revelaram porque lhes deu a míngua, perderam o medo, a vergonha e resolveram arriscar tudo saindo à escancara para a claridade, descarados como a própria luz. Provavelmente, a gruta que habitavam tornou-se pequena demais para tamanho empenho, tanta sede de sangue – aconteceu uma inadiável necessidade de alargar território para lá dos limites previsíveis. Enfim. Nunca fui lá muito com sagas vampirescas até aperceber-me de que vivo numa. Só agora, depois do descaramento desta bicheza toda é que me apercebi de que são muitos e de que aumentam em número a cada dia que passa, hora. Agora, ainda se torna mais difícil identificá-los no meio do caos – são demasiado astutos e usam de camuflagem, artimanhas próprias da espécie, desenvolvidas em grupo, nos nichos, estudadas e aprimoradas durante anos. A representação desta espécie parasitária, tornou-se com a prática tão eficaz, tão real, que qualquer um de nós já faz parte do elenco sem querer e sem saber, sem ser convidado e sem receber cachet – reembolsando cada vez mais para viver, fazer parte do mundo, morrer. Asseguro-vos – o vampirismo está muito para lá da ficção – é real, vai deixar-nos de tanga e descarnados, até passarmos todos a fazer parte do elenco de uma nova saga – a saga interminável dos mortos-vivos. Desesperados como andam por manter a espécie unida, salvar o que com tanto esforço conseguiram, talvez tenham os chupa-gente de subjugar-se ainda mais ao controlo dos espécimes alemães, ao avanço silencioso dos vampiros asiáticos, antes que não reste nada – nem vivos nem mortos, nem sagas nacionais, apenas uma patriótica e descartável memória. Antes de pensar no fim ainda tenho esperança no combate. Veremos quem vence – se os vampiros chupa-gente se a gente morta-viva!

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